Novo texto do Projeto de Lei enviado pelo governo federal poderá censurar redes sociais

Fiscalização das redes sociais e plataformas audiovisuais: o embate em torno do papel da Agência Nacional do Cinema (Ancine)

Brasília – Em meio ao avanço das plataformas digitais e ao crescente consumo de vídeos e áudios pela internet, o Congresso Nacional vêm debatendo um conjunto de propostas legislativas que buscam ampliar a regulação e a fiscalização das atividades das plataformas de streaming, de compartilhamento de vídeos e, em certa medida, das redes sociais — sob a tutela da Agência Nacional do Cinema (Ancine). O debate encontra resistências e apoios, e volta ao centro da agenda por envolver questões de indústria cultural, liberdade na internet, competição internacional e soberania tecnológica.

O que está em pauta
Um dos principais projetos em tramitação é o Projeto de Lei 8.889/2017, que visa regulamentar os serviços de vídeo sob demanda (VoD) no Brasil — serviços como os de streaming — para incluir obrigações como cota mínima de obras nacionais em catálogos, e a cobrança da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) sobre essas plataformas.


Em seus relatórios, há previsões de que a exigência também alcance plataformas de compartilhamento de vídeos que funcionam como redes sociais, segundo manifestações da própria Ancine.
Ainda que não haja um projeto único com foco exclusivo em “fiscalização das redes sociais pela Ancine”, o escopo regulatório em discussão engloba modelos de negócio digitais que combinam streaming, publicidade, compartilhamento de vídeos e, em muitos casos, funcionalidade tipicamente de redes sociais.

O papel da Ancine e os desafios institucionais
A Ancine, agência federal responsável pela regulação, fomento e fiscalização do setor audiovisual, vê no cenário digital uma nova fronteira para sua atuação. Em sua Agenda Regulatória para 2025–2026, a agência delineou ações como “regulamentação dos procedimentos de controle regulatório dos assuntos relacionados à ordem econômica no setor audiovisual” e “regulamentação do art. 3º da Lei nº 14.815/2024”, que trata de sua atribuição para suspensão ou cessação de uso não autorizado de obras.


Isso mostra que, para além dos serviços tradicionais, a agência reconhece a necessidade de monitorar e disciplinar novos modelos de negócio, inclusive disseminados pela internet, em cujo funcionamento as plataformas de vídeos convivem com redes sociais.
Entretanto, há importantes obstáculos à atuação: os modelos de negócio são variados — assinaturas, publicidade, compartilhamento de usuário por usuário — e a fiscalização efetiva exige instrumentos normativos claros, dados confiáveis e competência regulatória compatível. Como observou a Ancine em audiência pública, “plataformas de compartilhamento de vídeos, como YouTube e TikTok, devem ser abarcadas”, mas com distinção de tratamento regulatório entre modelos de negócio.

Críticas e receios da indústria audiovisual
Produtores independentes, cineastas, roteiristas e técnicos do setor audiovisual manifestaram forte oposição às versões mais recentes do PL 8.889/2017. Entre as críticas, apontam que o relatório do relator Dr. Luizinho (PP-RJ) representa “risco histórico de desmonte da indústria audiovisual nacional”, ao contrariar o posicionamento técnico da Ancine e ao favorecer plataformas estrangeiras.


Alguns dos pontos de tensão:

  • A alíquota prevista de cobrança da Condecine para streaming e plataformas, fixada em até 4 % conforme relatório.
  • A cota mínima de obras brasileiras nos catálogos das plataformas, ontem proposta em 10 %, considerada insuficiente por representantes da cadeia produtiva — que pediam 20 %.
  • A possibilidade de que modelos de compartilhamento de vídeos com publicidade (frequentemente serviços de redes sociais) sejam incluídos na tributação/regulação, o que abre precedentes para uma fiscalização mais ampla.
    Para a indústria audiovisual independente, existe o receio de que a regulação seja moldada em função de grandes plataformas internacionais em detrimento da produção nacional e da diversidade cultural brasileira.

Liberdade de expressão, redes sociais e responsabilidades
Do outro lado, está a dimensão da liberdade de expressão, da diversidade cultural e da autonomia das plataformas digitais. Há temores de que regulações muito amplas ou mal definidas possam se converter em mecanismos de controle indevido ou autoritário sobre conteúdos gerados por usuários (User-Generated Content).
Em nota divulgada pela NIC.br, foi destacada que o projeto de streaming “não menciona imposto para usuários das redes sociais” — e que a “confusão proposital” que alguns políticos fazem entre esse PL e o Projeto de Lei 2630/2020 (o chamado PL das Fake News) acaba por gerar incertezas.
De fato, o PL 2.630/2020 tramita no Congresso com foco em transparência, desinformação e responsabilidade de plataformas digitais.
Esse entrelaçamento de pautas — regulação de streaming + regulação de redes sociais — torna o debate ainda mais complexo: definir com precisão o que é “vídeo sob demanda”, “plataforma de compartilhamento”, “rede social com vídeo” ou “serviço remunerado por publicidade” é essencial para evitar violações de direitos, segurança jurídica e garantir competitividade.

Impactos esperados e desafios práticos
Caso as propostas avancem nos termos discutidos, os impactos podem ser diversos:

  • Fortalecimento da produção brasileira audiovisual, se as cotas e os recolhimentos servirem para fomentar produtores nacionais.
  • Aumento de custos para plataformas que operam no Brasil, seja por cobrança de Condecine ou obrigações de reporte, que poderiam ser repassados aos usuários ou anunciantes. (Alguns alertam esse risco.)
  • A ampliação do escopo de fiscalização da Ancine, que até aqui atuava mais fortemente sobre exibição e produção, mas agora poderia supervisionar serviços de streaming e compartilhamento digital.
  • Potencial litígio ou questionamentos sobre liberdade de expressão, regimes de responsabilidade pelas plataformas, mecanismos de bloqueio ou suspensão de conteúdos, sobretudo se forem interpretadas de forma abrangente as competências da agência.
  • Complexidade regulatória: para que a atuação da Ancine seja eficaz, será necessário que lei e regulamentos definam claramente os serviços regulados, os critérios de distinção entre plataformas, as alíquotas, os mecanismos de reporte e fiscalização, bem como garantam mecanismos de contestação ou recurso para os regulados.

Próximos passos e cenário político
Na Câmara dos Deputados, o texto-base do PL 8.889/2017 foi aprovado na noite de 3 de novembro de 2025, com 330 votos a favor e 118 contra.
Agora aguardam-se os destaques (trechos votados separadamente) para 4 de novembro, que podem alterar o conteúdo final. Depois, seguirá ao Senado para apreciação.
Enquanto isso, o setor audiovisual e entidades da sociedade civil pedem diálogo, revisão de pontos considerados controversos e maior participação da cadeia produtiva para evitar retrocessos.
Do lado dos reguladores, a Ancine aguarda a aprovação da norma e se prepara para elaborar regulamentos específicos, diferenciar modelos de negócio, e coordenar com outras agências, como a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Por exemplo, Anatel e Ancine recentemente firmaram acordo para combate à pirataria digital.

O debate acerca da fiscalização das redes sociais e plataformas digitais pela Ancine representa um ponto de inflexão para o país: como equilibrar promoção da cultura brasileira, inovação tecnológica, competição internacional e garantia de liberdade na internet? O resultado definirá não somente regras para streaming e compartilhamento de vídeos, mas as bases de regulação digital no Brasil nos próximos anos. A atenção da sociedade, do setor audiovisual e das plataformas deve permanecer elevada — pois o projeto, mais do que técnica regulatória, trata de futuro cultural e digital do país.

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